Flashback


Nos meus Verões, apanhávamos amoras no Douro para a minha irmã mais velha fazer doce. Acordava religiosamente antes das oito e meia, hora a que soava um silencioso e discreto recolher obrigatório do que havia na mesa do pequeno-almoço; nessa altura não precisava de despertador, esse objecto triturador de tímpanos, porque torradas no forno pinceladas com manteiga previamente derretida faziam muito mais por me acordar do que dez galos a cantar ao mesmo tempo, quanto mais esses subprodutos fabricados na China ou em Taiwan, inventados por um sádico, que retiram qualquer glamour à alvorada. Vivia assim o dia como não o faço hoje, perdido que fico sempre que posso a resmungar no vale dos lençóis. Tomava banho no Corgo, ainda o comboio serpenteava até Vila Real, em locais onde os pais de hoje jamais deixariam ir os seus filhos. Saía de espingarda de chumbos para apanhar passarecos. Nem sei bem porquê, pois nunca acertei em nenhum (o que me leva a acreditar que sou hoje contra a caça, mais para defender com dignidade a minha ausência total de pontaria, do que por respeito pelos pobrezitos). Depois do almoço, à hora do calor, recolhia à "loja" ou ao lagar, onde um frio bom convidava à leitura. Ou a uma partida de xadrez. King. Póquer, literalmente a feijões, até ser banido pelo Conselho de Pais: era demasiado interessante e perturbava outros hábitos mais calmos; as peças do jogo acabaram no tacho, misturadas com tripas. Depois do lanche, o pátio era dominado pelo esférico: no fim das férias, as paredes, provisoriamente balizas, tinham de ser novamente caiadas, já que os grandes golos eram aqueles que se faziam acompanhar da queda vertiginosa de um bom bocado de cal. 

Na Régua, aprendi a cantar, hábito que nunca cultivei, noutras geografias, por timidez adulta, bom-sendo e respeito pelos que me são próximos. A alegria contagiante da nossa avó, a quem chamamos Cuca, levava-me sempre para lá do provável: e com ela ninguém podia ficar de fora. Pensando bem, a Cuca foi a única mulher que me conseguiu pôr a cantar. 

Quando calhava, desciamos pela estrada de terra ou a cortar caminho pelas vinhas até Santo Xisto, ao Manel da Venda, para levar o correio ou comprar o que houvesse; normalmente, não havia nada; que é como quem diz; vinho a copo, de um vermelho que manchava, bagaço ou cerveja não faziam parte da minha dieta. Ficava tonto só com cheiro. Sou tentado a achar que a minha primeira bebedeira foi assim olfactiva. Questionava-me onde tinha posto o Manel os seus dentes, e como é que, tão bêbado, nunca se enganava no troco. Hoje a vida que pensamos complicada, é mais simples, levanta-nos menos questões, mandamos e-mails. 

Foi nas férias de verão que descobri que os gatos caem sempre direitos, independentemente da altura em que os arremessamos e do carácter voluntário ou não do respectivo salto. Posso afirmar com propriedade que doi nesta época da vida que reservei o meu bilhete de ida para o Céu (em classe executiva): Missa e Terço faziam parte da rotina diária. Havia tempo até para nos lembrarmos de Deus. Estou certo que, se não matar ninguém e não desviar subsídios da PAC, os Jardins do Éden já não me escapam! 

Ao fim do dia, gostava de olhar ao longe as Serras das Meadas e do Marão; durante anos, pensava alto com o meu primo Miguel que um dia a haveríamos de subir. E subimos! Desde a estação da Rede, até à Ermida, pelos trilhos desenhados nas cartas militares! À noite, conversávamos nos terraços, vendo a estrelas; televisão, só às vezes, quando a antena caprichosa o permitia, captando o sinal. Houve noites em que alimentámos a síndrome de Nero, apreciando o fogo nas montanhas em redor, num tempo em que os incêndios eram sobretudo fruto da acção da Natureza ou da mera incúria, e não da maldade e da ganância dos homens. 

Nas férias havia também tempo para o mar. Nas praias de Leça, Beijinhos e Fuzelhas, a água era gelada, mas curiosamente não parecia. As ondas eram enormes, muito maiores do que as de agora. O mar, porém, não proibia nem aplicava coimas: colaborava com os pais, e fazia por animar as crianças. O vento era sempre presença assídua, pelo que nos fazíamos acompanhar de pesados "pára-ventos", os arqui-inimigos da "Nortada", e permitiam além do mais delimitar o nosso pedaço de areia. 

Quando não havia vento, então era porque tinha fugido o sol. Nesses dias tinha na mesma de pôr creme porque, segundo a minha mãe, "o nevoeiro queimava com mais força", algo que era para mim um grande mistério pois não via o sol nem sentia o calor a aquecer-me a pele. Foi assim que aprendi o que era a Fé: acreditar naquilo que a minha mãe me dizia, mesmo que não fizesse sentido nenhum. 

A minha mãe também me explicava que as praias do Norte me faziam bem, "porque tinham iodo". Talvez por estar carregadinho de iodo, na praia, apaixonava-me, dia sim, dia não. Nada contudo que interferisse com as rotinas diárias: apanhar "ranhosas" e caranguejos, de baldinho na mão; coleccionar "sameiras"; esférico: horas atrás do esférico; e piadinhas, centenas de histórias e piadinhas, que seguramente fizeram desejar muitos adultos que o dia acabasse. 

O meu irmão mais novo, não podendo na praia desafiar as leis da gravidade com gatos, preferiu aprender sozinho a ler no meio da areia, esvaziando de responsabilidade e necessidade a função do seu professor primário, provando-nos desde bem novo quão inútil pode ser o Estado. 

Lembro-me, como tu, das vendedoras ambulantes, que impingiam os seus bolos ou berravam, "Pipocas ou Batatinhas! Pipocas ou Batatinhas!". O pregão que mais me marcou, contudo, surgia ao longe, cada vez mais perto, cantado por uma velha senhora, carregada de saiotes e lenços, que se arrastava desde Leça até à Boa Nova, e com uma pronúncia que não enganando, entoava: "Olhaaaai os biscoitinhos de Baluanguuuu; Olhaaaai os biscoitinhos de Baluanguuuu". Valongo. Demorei dez anos a perceber onde ficava, afinal, Baluangu. 

Este fim-de-semana vou ao Douro.

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