Sobre a emergência de um pensamento liberal

No Licenciosidades, o José Barros retoma um dos seus assuntos preferidos: a criação de um Partido Liberal, para cujo debate pretendo dar o meu contributo. I] Com o esbatimento da dicotomia esquerda-direita; com a afirmação da sociedade mediática, politicamente correcta, imediatista e pouco consistente; com o adormecimento da generalidade dos cidadãos, anestesiados pela descoberta dos prazeres de uma vida amena e alienada; abriu-se espaço para que PS, PSD e PP se tenham tornado mais estruturas organizadas de tomada do poder, e menos partidos de matriz doutrinária. As tensões ideológicas, hoje, contudo, persistem, situando-se algures entre a) os que acreditam numa sociedade instituída a partir do Estado, funcionando este como locomotiva do crescimento económico, do emprego, e garantia de um conjunto de direitos sociais (essencialmente educação/formação, saúde, assistência no desemprego e reforma); e b) os que exigem uma diminuição – maior ou menor – da ingerência do Estado (que não se reconduz apenas ao seu peso relativo no consumo de recursos produzidos), permitindo que o país se organize menos em seu redor e mais a partir da sociedade civil e das suas instituições de carácter voluntário, mantendo-se os poderes públicos equidistantes e centrados nas suas tarefas essenciais. A par destas tensões, existem outras, c) no plano moral, e que se traduzem em tentativas de regulação por via legal de matérias do foro privado (educação, aborto, procriação e natalidade, prostituição, consumo de drogas, tabaco, casamento, família, religião). Ora, os partidos políticos do eixo da governação não são capazes de se confrontar de uma forma clara com todas estas novas dicotomias, actuando perante elas de uma forma esquizofrénica e muitas vezes, até, incongruente face aos seus propósitos tradicionais. II] Como o estatismo e o socialismo, nas suas distintas variantes, condicionam ainda fortemente a mentalidade da população, e os partidos por definição praticam um discurso político orientado para satisfazer as suas clientelas eleitorais, reféns que estão do processo democrático, da tirania das sondagens, e do "carreirismo" político, poderia considerar-se inviável a defesa de soluções distintas daquelas que informam a retórica partidária. A emergência da realidade, porém, é cada vez mais violenta, e impõe aos políticos, sobretudo no momento do exercício do poder, a tomada de decisões que se afastam cada vez mais das suas utopias sociais. A latitude que existe hoje entre o projecto constitucional de matriz social em vigor, o discurso político pré e pós eleitoral, o exercício concreto do poder e a realidade, nua e crua, é cada vez mais ampla, e vive carregada de contradições. Por isso encontrámos o PSD na oposição a defender maternidades em Barcelos, por pensarem os seus dirigentes actuais ser esta a reivindicação das populações deste concelho maioritariamente laranja (ignorando silenciosamente que o estudo sobre a viabilidade das maternidades foi encomendado por Luís Filipe Pereira – Ministro da Saúde do PSD – que só não foi o protagonista da reforma devido à queda prematura de Santana Lopes); ou verificámos que o governo apenas alega preocupações de Saúde Pública para justificar uma medida que acarreta, também, uma significativa racionalização de meios (aspecto que poderá, aliás, ter ajudado a precipitar as decisões de encerramento), retirando do discurso político todas as referências a uma das principais motivações da medida tomada (não vá alguém lembrar-se de acenar contra o Governo o fantasma do "economicismo"). III] O cenário em que vivemos é assim confuso e fértil em contradições. Desde logo, o modelo assistencialista e paternalista em que Portugal vive historicamente mergulhado, aliado ao forte crescimento ocorrido desde a adesão de Portugal à UE, tornou o Estado no pivot incontornável de todo o jogo económico e social, assumindo este uma dimensão considerável: os partidos de poder, da mais diversa "inspiração" – socialista, social-democrata, democrata-cristã – seguindo as mais distintas retóricas políticas, implementaram inúmeras restrições a várias expressões de liberdade; hoje, porém, constata-se que tais limitações nem sequer atingiram o seu propósito essencial, pois não conduziram ao progresso económico, à prometida diminuição das desigualdades e bem-estar dos cidadãos. IV] Com a alteração do contexto económico mundial, Portugal foi novamente colocado num patamar de exigência de que rapidamente – duas décadas – se havia "desabituado". Este choque dos cidadãos e dos políticos com a realidade está a ser doloroso e desagregador do ponto de vista do nosso tecido social. O Estado absorve hoje metade dos recursos produzidos pela economia formal, redistribuindo-os segundo critérios que – objectivamente – não conduzem ao bom funcionamento da Justiça, à promoção de ensino ou saúde de qualidade, a uma correcta erradicação da pobreza. Pelo contrário, constata-se que a acção estatal criou uma cultura de mediocridade, onde o mérito é penalizado socialmente, seja por via fiscal, seja pela agressividade mantida em relação aos aventureiros que persistem em obter lucros, frequentemente referenciados como "obscenos"; a própria legislação laboral e fiscal, obcecada pelo igualitarismo, retirou liquidez ao factor trabalho, que de tão protegido e condicionado pela progressividade na tributação, vê dificultada a evolução salarial efectiva e convida à mediania; assiste-se a um adormecimento colectivo; lentamente, "matou-se" uma boa parte da iniciativa e do espírito empreendedor. Portugal está sob uma forte pressão e com os incentivos erradamente montados, pelo que não espanta que se evaporem para o exterior um novo tipo de emigrantes: qualificados, muitos deles jovens com formação universitária, que não encontram no seu país oportunidades de trabalho adequado nem espaço para a sua afirmação, ao mesmo tempo que se assiste a uma forte vaga de imigrantes, que ocupam os lugares dos portugueses que se acomodaram ao desemprego "com direitos". V] No actual quadro, Portugal vai ter de mudar; há que alterar a atitude individual; os cidadãos vão ter que passar a saber viver segundo patamares de exigência; a despesa pública não pode continuar a ser a medida de anseios de políticos e de largas franjas da população acomodadas, funcionando como factor de inequidade, passando a basear-se em pressupostos realistas e determinados por regras justas: não podem, v.g., persistir regras laborais distintas entre o sector público e o privado, em que uns são lançados no desemprego mesmo quando exercem a sua profissão com zelo enquanto outros, não só são inamovíveis, como se arrogam da possibilidade de solucionarem os seus conflitos laborais com "baixas" onde o salário é integralmente suportado por todos; temos que compreender no momento do gasto que cada euro tem subjacente uma escolha e, também, um custo de oportunidade; e que por cada euro mal gasto hoje, são vários os euros que deixámos de poder usufruir no futuro; do mesmo modo, é preciso desmantelar os sectores do Estado e os seus processos que não servem os cidadãos, mas grupos de interesse que o aprisionaram e se apoderaram dos esquemas redistributivos (e que não são sequer os destinatários constitucionalmente protegidos), em particular na Saúde, na Educação e na Segurança Social. Urge ainda envolver os cidadãos nas decisões que lhe dizem respeito, levando-os a assumir um papel na educação dos seus filhos e, ainda que parcialmente, na garantia da sua saúde e na capitalização das suas reformas. Os incentivos devem ser realinhados, orientando-os, senão para o mérito, pelo menos para recompensar o esforço. VI] Assim, mais do que partidos liberais, importa sobretudo apresentar e difundir um conjunto de ideias que, pela sua actualidade e validade, poderão ajudar o país a ultrapassar as dificuldades que, de uma forma irreversível, se nos colocam no presente e vão persistir num futuro próximo. É indispensável que haja pessoas capazes de decidir bem. Ora, um bom conhecimento das matrizes liberais, neste contexto de mudança, revela-se de grande utilidade; o liberalismo, cuja doutrina económica se deduz através da análise dos processos, cujo ideário político tem uma base fortemente realista, e que aspira a uma sociedade gerida a partir de incentivos correctos (que respeitem o indivíduo, a sua liberdade, assentes na responsabilidade e na exigência), surge por isso com renovada actualidade. Este é um desafio político transversal, e que será mais útil se não se "enjaular" nos limites de uma única formação partidária (existente ou a constituir). Rodrigo Adão da Fonseca

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