Mortificação e sofrimento

Sex, 2004 Glenn Brown Collection of David Teiger Photo credit: Rob McKeever © 2004 Glenn Brown
Num tempo em que o bem-estar e o prazer têm dignidade de "valor", julgo ser normal que se olhe com alguma desconfiança para aquilo que é a mortificação física voluntária. Eu, como hedonista moderado - nisso sou um "sub-produto" do meu tempo - limito-me a aceitar o sofrimento que a própria vida acarreta: as desilusões, a morte, a doença, o esforço necessário para se atingir um objectivo fazem parte do meu quotidiano, a que procuro dar um sentido na minha existência pessoal. Agora, numa sociedade em que muitos se flagelam para obter prazer sexual; em que as formas de escravidão para a obtenção de prazeres efémeros assumem as mais distintas configurações, desde noites numa fila para obter um bilhete de futebol, até ao amontoar de gente em rituais de consumo, o que menos me preocupa são os sacrifícios físicos moderados de pessoas que consideram que, por essa via, ficam mais próximas de uma ideia de Deus. Constato ainda com curiosidade esta nova paixão do Rui: o "fenómeno das telecomunicações" entre Deus e os crentes. A argumentação é escorreita, como aliás seria de esperar; em qualquer caso, há uma incorrecção que importa assinalar; o Rui afirma que "(...) o sacrifício físico, que pode ir da estimulação dos sentidos pela dor à própria mortificação (...) como via de ascese a Deus, não deixa de ser uma forma humana, excessivamente humana, de O querer alcançar (...)"; ora, o sacrifício físico sempre foi valorizado pela Igreja, e encontra em Cristo - e na forma como sofreu na cruz para supostamente salvar a Humanidade - um dos seus actores principais. Não me parece, por isso, que todo este raciocínio - esforçado e até criativo - corresponda a uma preocupação real das hierarquias da Igreja, e que certos actos moderados de mortificação sejam considerados, para os lados da Praça de S. Pedro, desvios fundamentais ao ponto de serem classificados de "heresias". Rodrigo Adão da Fonseca

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