Rien ne va plus

(artigo originalmente publicado na revista Dia D de ontem, 12 de Junho, e que recupera um dos temas mais desenvolvidos aqui no Blue Lounge, já objecto de análise no Blasfémias) Democracia e Liberdade são habitualmente apresentadas como faces distintas de uma mesma moeda. É hoje consensual – e bem – que sem Democracia não existe Liberdade. Na minha humilde opinião, porém, neste jogo de forças o papel da Democracia tem sido excessivamente valorizado. A Democracia em si não tem o valor social que por vezes lhe atribuímos: ela é apenas uma forma de governo das sociedades, que se impôs pelos seus méritos na generalidade dos países desenvolvidos, mas assiste apenas na afirmação da soberania popular como princípio fundamental: serve para organizar um poder que emana da generalidade dos cidadãos. Tem, assim, uma justificação funcional, sendo esse o seu valor social (Kelsen): a finalidade da democracia – e não é coisa pouca – reside na sua capacidade de tornar efectivos os valores da liberdade e a igualdade de oportunidades. Com o crescimento exponencial do Estado, porém, a maior parte das relações sociais passaram a ser arbitradas e mediadas pelos canais democráticos, criando dificuldades e tensões insanáveis entre aquilo que são as regras do jogo político e a efectiva protecção das liberdades concretas: o alargamento do papel do Estado, para lá da protecção dos direitos fundamentais, concentrando na acção colectiva um conjunto de funções tidas como “sociais”, conduziu-nos a um modelo de sociedade onde se privilegiam com frequência liberdades prescritivas, em detrimento ou esvaziando liberdades negativas básicas (tais como as apresentam Stuart Mill ou Isaiah Berlin). Perante as soluções adoptadas muitos cidadãos sentem-se legitimamente defraudados; desde logo porque constatam existir uma manifesta desproporção entre a multiplicidade de funções que se concentram na esfera Estatal e a forma minimalista como a “soberania popular” é exercida: os cidadãos, num só acto, por intermédio de um único voto, têm de escrutinar centenas de decisões com impacto directo sobre a sua esfera individual (v.g., Educação; Saúde; Reforma), num processo de síntese complexo e por vezes contraditório. O processo eleitoral perdeu, no actual contexto, a sua vocação contratualista, o seu carácter de agência, para se tornar num cálculo “para-matemático” onde buscamos desesperadamente um “mínimo denominador comum” que sustente a nossa decisão (que Popper converte num simpático eufemismo a que chama “possibilidade de se expulsar ou «despedir» governos”). Quer o vínculo contratualista quer os mecanismos de controlo do fenómeno político estão hoje enfraquecidos, tendo-se criando o ambiente propício para que à volta do Estado gravitem uma pluralidade de “interesses”/“interessados” que redistribuem entre si, sob a cobertura de um complexo manto legal, os frutos do poder concentrado na esfera pública, fora da tutela dos cidadãos. Com mãos de veludo, o Estado e os seus agentes criaram uma rede de “interesses”, de subvenções, desenvolveram retóricas que justificam a(s) sua(s) própria(s) existência(s), actuando numa teia intrincada e de difícil compreensão, ainda assim perceptivelmente incoerente e incongruente com muitos dos fins que assume(m) perseguir. A generalidade dos cidadãos, contudo, no início deste novo século, encara perplexa toda esta realidade, que não entende; antes verga-se perante esta nova absolutização do Estado, sacralizando os seus dogmas; alimenta-se das suas Utopias, seguindo quem saiba entoar loas de esperança, confiança e salvação; “instrumentaliza-se”, aceita os papéis que lhe estão reservados; vê o fenómeno político como uma boa “ponte” para concretizar os seus objectivos pessoais: “joga o jogo”, onde por vezes ganha, por vezes perde; os cidadãos preferem alinhar nestes processos sociais autofágicos, recusando-se a compreender o poder que teriam se optassem por fazer escolhas verdadeiramente livres (quiçá Kelsen, avant la letre). Temos antes preferido seguir o caminho mais curto para a servidão (Hayek). Opções... Rodrigo Adão da Fonseca

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