As Bodas de Canã

Como ponto de partida, quero deixar bem claro que nada me move contra o cidadão Manuel Alegre, por quem, aliás, tenho alguma simpatia pessoal. Suponho, até, que estará a ser lançado para a fogueira - não pela oposição, como se quer fazer passar - mas por quem ainda não digeriu a sua decisão de candidatura presidencial. Estou ainda certo que existirão centenas de casos análogos - e alguns bem mais graves - aos de Manuel Alegre, muitos deles em que o comportamento tendente a aproveitar a manta de retalhos em que se tornou a teia de subvenções vitalícias travestidas de reformas concedidas ao status quo que se apoderou do país após a revolução - de todos os quadrantes políticos - terá sido pro-activo, o que, lendo o que escreve Vital Moreira, não terá ocorrido neste caso (de facto, tudo indicia que Manuel Alegre não terá orientado as prioridades da sua vida no sentido de maximizar certos benefícios, embora, obviamente, não esteja a prescindir deles). Agora, e após ter lido o que escreve Paulo Pedroso (peço que este que me corrija caso alguma das conclusões que retiro do seu texto estiverem erradas), e do que me consegui apurar após algum trabalho pessoal: a) Manuel Alegre terá direito a uma reforma por inteiro pelo facto de ter iniciado a sua carreira contributiva na RDP, sem que se tenha desvinculado dessa empresa enquanto exerceu as suas funções de deputado (desde os anos 70 até hoje); b) A partir de uma vida activa quase toda ela no Parlamento, Manuel Alegre acede a uma reforma por uma carreira que não cumpriu na RDP, mas a que tem direito, por lei, pelo facto de i) ter mantido os seus descontos para a Caixa Geral de Aposentações, e ii) ter exercido funções de deputado. Até aqui, aparentemente, tudo parece simples. Mas falta o resto da história. c) Ficamos desde logo sem saber quem fez os descontos correspondentes à entidade patronal (a RDP, sem que Manuel Alegre aí tenha desempenhado trabalho efectivo - leia-se, os contribuntes, que a RDP é uma empresa pública - o Parlamento - novamente os contribuintes - o próprio, ou pura e simplesmente ninguém - ou seja, os contribuintes novamente). d) O que é grave em todo este filme é que com base no mesmo esforço desenvolvido como Deputado - tarefa árdua, como é bem sabido - e que dá origem à tal reforma da CGA via RDP, com a mesma base salarial, e sem qualquer desconto adicional, Manuel Alegre continua habilitado a uma "reforma" parlamentar, cujos termos são por demais conhecidos. e) É este "milagre" da multiplicação dos pães que deixa qualquer cidadão esforçado indignado. A classe política "chora-se" sistematicamente por ser mal remunerada, mas à medida que os véus se levantam - e são vários os relatos que volta e meia vêm a lume, em geral para "chamuscar" selctivamente o visado - uma lama bem viscosa vem à tona; talvez Manuel Alegre esteja a ser penalizado pela forma poética e arrojada como decidiu atacar na campanha presidencial o próprio sistema político; há cinismo suficiente na política em Portugal para lhe servir, agora, bem fria, esta vingança, relembrando-lhe que ele, em rigor, faz parte desse status quo há décadas, e que o seu habitat é este mesmo pântano. f) Há toda uma geração de pessoas que vive deste tipo de subvenções vitalícias, reformas e reforminhas mais modestas, gatos com sete vidas (e com o mesmo número de reformas). A ausência de capitalização individual, um sistema estatal que soube sempre ser generoso com os recursos que não são seus (e que em muitos casos o impacto negativo do seu desperdício só será sentido no futuro), a par de uma retórica de demonização dos salários dos "privados" contraposta à sacralização da "dedicação e o serviço público mal remunerado", deu nisto: uma teia sem qualquer sentido, francamente injusta, legal, uma lama, onde haverá milhares de implicados: quase toda uma geração que gravitou num dado ambiente político e para-político, dos vários quadrantes partidários e seus satélites. g) Sócrates já deu instruções para que o PS "defenda" Manuel Alegre; correndo o risco de ser injusto, fez-me lembrar Arafat, quando condenava os ataques bombistas contra Israel no mesmo instante em que apoiava os grupos terroristas implicados; Manuel Alegre está a pagar a factura por ter afrontado o status quo. A teia de benefícios é demasiado transversal para que haja próximos episódios. Por isso ninguém fala. Que não seja para colocar àgua na fervura. Pois basta "chamuscar" o Manuel Alegre; não é preciso "carbonizá-lo". Segue-se assim um silêncio podre. O regresso à normalidade. Aos incêndios. à praia. Em Setembro, tudo isto estará esquecido. Rodrigo Adão da Fonseca

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