Paz e Poder

[artigo publicado na Revista Dia D que acompanha o Jornal Público de ontem, 7 de Agosto de 2006]

Michelangelo Pistoletto, Gemelle (Mirror Triptych), 1998

A "Europa" (tal como a apresenta T. Garton Ash) vê hoje o Poder como uma expressão institucional, assente no consentimento ou reconhecimento daqueles que o exercem, maxime império da lei. Esta noção implica um forte consenso na salvaguarda de certos valores, tidos como "nossos" (H. Arendt), apresentados sempre como realidades conciliáveis entre si, desde que nos socorramos dos sãos princípios da tolerância e da liberdade negativa (Berlin): a Europa conseguiu, assim, do ponto de vista civilizacional, e durante algumas décadas, afastar-se dos mundos descritos por Hobbes, Weber ou Dahl, entretanto fortemente criticados por defenderem visões dominadas por preferências opostas, em tensão, em que os antagonismos se dirimem mediante predomínio de "uma" sobre a "outra". Constata-se, porém, que esta forma de encarar o Poder não é subscrita por uma boa parte da humanidade, cujo enquadramento civilizacional é distinto; em algumas zonas do globo, aliás, vive-se ainda numa situação próxima da descrita por Hobbes quando este se refere ao "estado-natureza". Ora, muitos cidadãos europeus encaram os conflitos fora do seu espaço (veja-se o que se tem dito e escrito a propósito da contenda entre Israel, o Hezbolah e a Síria) no pressuposto que os distintos interlocutores partilham da mesma noção de "Poder"; como se no actual estádio de desenvolvimento da humanidade os valores subjacentes a cada civilização fossem permanentemente conciliáveis. Não são: nem sempre os diferendos se podem solucionar recorrendo ao "prisma de Giddens". Esta atitude poderá estar em parte a ser induzida pela abordagem simplista de certos órgãos de comunicação social (e de um dado leque de lideres de opinião) que, afirmando imperativamente a Paz, em qualquer circunstância (mas apenas para alguns conflitos), ignora – a meu ver, de um modo irresponsável – que esta, além de uma ideia e um valor, é sobretudo um estado: como se os avanços civilizacionais que permitiram à Europa cinquenta anos de estabilidade não tivessem tido um custo, um esforço, uma acção. E fossem replicáveis, num mundo diverso, sem mais. O posicionamento de alguns países na cena internacional (v.g. as teocracias islâmicas; a Coreia do Norte; o neo-Castrismo de Chavez e Morales; a posição ambivalente da Rússia e da China), convida-nos a revisitar o quadro onde equacionamos as nossas relações de Poder: importa ter presente que não basta querer viver em Paz, ser livre, enunciar e consentir nessa liberdade: é preciso Poder (no sentido tradicional) para a viver, Poder para o ser. Recordando Weber: "power (...) is the probability that one actor within a (...) relationship will be in a position to carry out his own will despite resistance". O mundo está assim difícil de compreender. E são várias as ameaças. A Europa (e não apenas os EUA, Israel ou o mundo árabe) corre fortes riscos, dado o seu posicionamento geográfico e a vulnerabilidade dos seus territórios, o envelhecimento da sua população, e a dificuldade que demonstra em absorver e integrar culturalmente milhões de emigrantes que se recusam a partilhar os valores mínimos do espaço civilizacional que ocupam. Em vez de atender tanto ao universo exterior, talvez fosse bom que começássemos a cuidar um pouco do nosso. Os cidadãos europeus devem, assim, olhar a humanidade, nem sempre reconciliável, ganhando consciência que, para garantir as suas liberdades, no actual quadro internacional, existe um preço adicional a pagar: que passa por reforçar a Segurança; por preservar, nos seus limites territoriais, o quadro civilizacional europeu. Sem garantir estes dois pilares, a prazo, na Europa, muitas liberdades serão restringidas; algumas, até, suprimidas. A Paz não se impõe de per se. Não pode continuar a ser encarada como se fosse um valor intrínseco, não dependente de condições e circunstâncias exteriores, que têm de ser trabalhadas e criadas. A Paz conquista-se, e sem ela não se consolidam sociedades livres. Por isso, é essencial perceber que não é livre quem quer, mas quem pode. Pelo que, para ser livre, não basta querer; é preciso Poder. Rodrigo Adão da Fonseca

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