Blue Painting: Edward Ruscha
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Uma das estratégias mais utilizadas pelos que se colocam a favor da despenalização do aborto passa por arrastar a outra parte para uma espécie de gueto na discussão, associando-a a posições dogmáticas, apriorísticas, quase fundamentalistas. No fundo, o ponto de partida é a desvalorização moral do outro para o debate, e a colocação de rótulos.
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A discussão sobre o aborto tem ainda uma outra particularidade. A desqualificação faz-se pela tensão entre os que são dotados de uma dada "humanidade", porque atendem à "realidade", e os "dogmáticos", sendo que uma posição que tenha presente valores e princípios parte desde logo em desvantagem, com um handicap. Curioso é também um certo posicionamento, de pessoas que em relação à generalidade das matérias cuidam bem do plano dos princípios, mas que neste ponto - e com toda a legitimidade - preferem fundamentar-se (e render-se) apenas na leitura da "realidade".
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O que não me parece propriamente de bom gosto é que se condicione a participação na discussão a uma espécie de “mea culpa” prévio, e que abrange a globalidade dos nossos hipotéticos comportamentos sexuais. É esta a linha de raciocínio que está subjacente a algumas posições, onde como ponto de partida desde logo se "desqualifica" uma parte significativa dos portugueses, porque terão usado preservativos, terão tido relações extraconjugais e pré-matrimoniais, recorrerão à pílula e comungaram, terão "ido às meninas" e até, na mesma linha, terão abortado ou sido cúmplices em algum aborto. E, imagine-se, eventualmente muitos deles (dizem que) são contra todas estas coisas. Como se fosse tudo isto que está em causa.
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A hipocrisia existe, mas não é um fenómeno exclusivo da moral. Nem da vivência religiosa. Nem se coloca apenas em relação ao aborto. Acresce que todos os aspectos descritos no parágrafo anterior - que poderão ter tido importância crucial numa dada época, e por isso certamente marcam a forma de abordar o assunto por representantes de algumas gerações - cada vez mais têm menos relevância. O mundo, v.g., que o Rui de Albuquerque descreve nos seus posts (e cujos links poderão encontrar nos meus textos abaixo) é, hoje, minoritário em Portugal. Há, felizmente, nos nossos dias, uma maior clarificação em relação às matérias da sexualidade, sobretudo no que diz respeito à contracepção, e mesmo os que a recusam, por questões religiosas ou de mera opção pessoal, fazem-no em grande parte de uma forma bem assumida e visível. Não me parece que hoje, nesta matéria, tenha assim tanto peso uma suposta hipocrisia. Centrar o debate neste ponto é dar dignidade e importância, num tema tão sensível, a raciocínios típicos do Exmo. Sr. Monsieur de La Palisse.
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Mas vamos então à "realidade", visto ser ela assim tão importante.
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Será que o aborto em Portugal é o flagelo de que se fala? Estaremos perante uma "pandemia" abortiva? Alguém estudou a fundo - barulho houve muito - os aspectos sociológicos associados à prática do aborto em Portugal na última década?
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Quantos julgamentos houve em Portugal em que mulheres tenham sido condenadas pela prática de aborto? Quantas mulheres estão presas? Qual a efectiva relevância penal da questão? Há uma demissão do poder judicial em relação à aplicação da lei? Porquê?
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Diga-se, em abono do debate, será que a vulgarização crescente dos métodos contraceptivos não torna cada vez menor a necessidade de um instituto do aborto legal? Não estaremos já longe do imaginário dos que querem fazer passar a ideia que hoje se aborta com a frequência com que se vai ao cinema? Será mesmo que é isso que se passa? E se o é, porque será que se recorre tanto ao aborto? Por dogmatismo? Por inibição no recurso à contracepção? Por mera irresponsabilidade? Por se assumir o aborto como uma última forma de planeamento? O que faz com que no mundo de hoje o aborto seja uma questão supostamente tão relevante?
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A lei portuguesa em vigor é assim tão retrógada? O que é que ela permite? Para onde pretendemos avançar com o referendo?
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Num tempo em o planeamento familiar bem aplicado é eficaz, sabido, como se sabe, que a prática sexual pode conduzir, entre outras consequências, a uma gravidez, queremos autorizar que alguém possa escolher se uma dada vida, já formada, deve ou não ser viável? E até onde? Quais são os nossos limites? E em que circunstâncias?
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Faz sentido que, numa época em que o planeamento familiar é amplamente eficaz, havendo crianças - vivas - que nos hospitais não têm os tratamentos necessários por ausência de verbas, se canalizem recursos para práticas de aborto a pedido?
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Permitindo o aborto a pedido, não estaremos a convidar os adolescentes , jovens e adultos a uma sexualidade menos responsável, por existir mais uma porta de saída? Qual o impacto que a legalização do aborto pode ter na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, como a SIDA e a hepatite B? Alguém sabe responder a esta questão?
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É mesmo verdade que um embrião faz parte do património da mulher, ou é já ele um corpo autónomo? O que a mulher faz com o seu corpo deve limitar-se à forma como vive a sua sexualidade, que é livre, mas que tem associada a possibilidade de ser mãe? Ou preferimos dar às mulheres a alternativa de, num dado período temporal, poder ela própria decidir sobre a viabilidade de um feto? E pode a mulher ser soberana nesta decisão?
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Estamos a referendar a despenalização do aborto, a pensar no presente e no futuro, ou apenas agarrados a marcas profundas e feridas do passado? Estamos perante processos de "cicatrização" ideológica e de consciência, ou a pensar no Portugal que temos e que queremos?
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Todas estas questões não são lineares, e merecem uma séria e honesta discussão. Mas importa resistir à tentação fácil de argumentar com base em chavões e rótulos que estão totalmente ultrapassados, e que fazem parte do património de um Portugal antigo. Eu, da minha parte, vou ter o gosto de participar no debate, mas não me vou deixar enredar por uma espécie de complexo moral ou religioso, que vise desqualificar as minhas posições.
Rodrigo Adão da Fonseca
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