Happy Hour Post: Sobre o pensamento de Leo Strauss

Pedro Arroja iniciou as suas lides blogosféricas com um texto intitulado "Leo Strauss". Onde o filósofo norte-americano de origem alemã é apresentado como o principal inspirador da corrente neocon que domina hoje uma parte significativa do pensamento político norte-americano (e que gravita, não apenas em redor da Administração Bush, como por vezes surge referenciado, mas que se posiciona em vários campos). Entretanto, e a propósito deste post do André Azevedo Alves, instalou-se uma interessante discussão na caixa de comentários do Insurgente que me levou a escrever estas "breves" notas de fim-de-tarde, a partir obviamente dos meus vários "rascunhos".
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O pensamento de Leo Strauss aborda, na verdade, temas que são caros ao establishment neoconservador: o judaísmo, o papel da religião no fenómeno político, o campo de actuação e a vocação do filósofo, o lugar do indivíduo, os tópicos da cultura, da contracultura e da moral.
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Temas que são, também, recorrentes no Blue Lounge. Por isso não podia deixar de apresentar, também por aqui, os meus comentários, algumas ideias soltas (o tempo não abunda) mas que julgo serem úteis para compreender o contexto e o pensamento de Leo Strauss, bem como a sua influência no pensamento neoconservador.
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Como ponto de partida, chamo a atenção para algo que julgo ser fundamental (que se aplica a qualquer autor, mas que neste caso se coloca com maior pertinência): não é possível compreender a obra de Leo Strauss sem conhecer e ter presente o seu trajecto pessoal, no tempo e no espaço. O percurso intelectual de Strauss atravessa todo o século XX – como gosto de dizer, o século mais longo da História da Humanidade – e estará marcado; pelas suas origens judaicas; pelo facto de ter nascido alemão; por ter vivido, estudado e ensinado na Alemanha, em França, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, em períodos bem distintos; por ter morrido americano. Strauss foi, sobretudo, um estudioso, que repassou a "pente fino" o pensamento de alguns dos filósofos mais marcantes da sua época, e outros de tempos idos, o que acrescenta valor à sua obra, mas também a envolve em diferentes polémicas e numa dificuldade acrescida de compreensão daquele que poderá ser o seu legado para o campo das ideias.
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O judaísmo de Strauss está implícito em todo o seu pensamento; faz parte do seu núcleo central; o que explica, em boa medida, a curiosidade e aderência de alguns dos seus seguidores, os mais proeminentes pensadores neoconservadores, para quem a defesa do povo judaico se posiciona no topo das prioridades. Strauss, nos anos 20 e 30 do século passado, esteve directamente evolvido no debate sobre o judaísmo; nesta contenda, fortemente radicalizada, colocavam-se, de um lado, os sionistas, que reivindicavam um Estado Secular para o povo judeu; e do outro, os que defendiam que os judeus deveriam antes integrar-se nos ambientes cristãos. Strauss posicionou-se mais no terreno sionista, em clara dissonância com os que, fundados em correntes sobretudo liberais, remetiam a religião para a esfera individual e privada; a corrente, digamos, mais "integrista", não reservava um lugar particular, no plano político, para a religião. Já os sionistas defendiam um Estado Secular, mas fundado numa cultura de inspiração religiosa (leia-se, judaica). A "Cidade" de Strauss está intimamente ligada a esta concepção sionista, em que a religião é revelada, não como expressão da Fé, mas sob a forma de Lei, destinada a prescrever e regular até os detalhes mais ínfimos da vida comunitária. Traços bem presentes no pensamento neoconservador.
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Strauss demonstra um especial desprezo pela política – e até pelo quotidiano – das "pessoas comuns", pelos seus aspectos mais concretos e correntes; não o fascina a liberdade individual – embora não a negue – dedicando-se antes ao culto da excelência e das virtudes. Cultiva o saber e a busca da verdade, actividades que, na linha da Antiguidade Clássica, são tarefas reservadas apenas a alguns; recupera, assim, o papel primordial do Filósofo, como inspirador – quase um "Profeta" – do fenómeno político, no qual, contudo, nunca se deve envolver ao nível do "concreto". Strauss, aliás, considera que o saber e o conhecimento devem ser categorias de "acesso reservado". Portador de um pensamento linear-dicotómico, e defensor de uma sociedade fortemente hierarquizada, dedica uma função para os políticos – o exercício do poder – e outra para os filósofos – que se devem debruçar sobre o núcleo reservado do saber. O político deve ouvir o filósofo; mas nunca o filósofo deve entrar no campo do político, para não cair no "erro socrático" (ver adiante); veja-se o modus operandi, v.g., de Fukuyama para compreender como esta forma de actuar está bem presente na hierarquia neoconservadora. A "reserva do saber" não se impõe apenas entre o filósofo e o político. Coloca-se ainda com mais acuidade em relação à comunidade. A "sociedade de sábios" deve evitar os conflitos que se estabelecem entre a actividade filosófica e os cidadãos, que vivem num universo conformado pelo "religioso" e se orientam pelos ditames da lei. Sócrates teria errado ao patrocinar um clima de discussão permanente com a generalidade dos Atenienses, sem distinção. O saber entrou em conflito com as convicções e conveniências, tornando-o um perigo para a "ordem pública"; acabou, por isso, condenado à morte. Strauss revê-se no modo de estar de Platão, que terá descoberto a verdadeira dimensão política da filosofia, afastando-se dos problemas correntes e quotidianos. Platão teria uma conduta pautada pela conformidade exterior, mas acompanhada por um inconformismo interno, que seria cultivado de uma forma prudente e reservada: a filosofia – ao contrário da religião – destina-se a uma minoria, e deve ser expressar-se, como defesa, numa linguagem pouco acessível. Importa evitar que as "pessoas comuns" tomem contacto com a "dureza" da verdade, justificando-se, até, em algumas circunstâncias, a "nobre mentira": aquela onde se ocultam ou ficcionam certos detalhes, para "amaciar" a verdade (sem nunca se distorcer, contudo, o seu núcleo fundamental); já que o contacto com o conhecimento por quem não domine os ditames do saber deve ser delimitado: a Filosofia põe por vezes em causa as bases morais da comunidade, pelo que o seu acesso irrestrito pode conduzir as "pessoas comuns" ao niilismo e a sociedade à desordem. A "reserva do saber" e a "nobre mentira"; a hierarquia rígida existente entre o filósofo e o político; a separação entre governantes – que buscam a excelência e a virtude – e governados, que seguem uma Lei devidamente conformada na Moral; são ideias profundamente enraizadas no pensamento neoconservador.
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Da minha parte, penso contudo ser útil resistir à tentação de reduzir a obra de Strauss, demonizando-a e reconduzindo-a aos limites estritos do pensamento neoconservador. Strauss desenvolveu uma obra complexa, que merece ser revisitada de uma forma crítica; conhece-la significa dominar as principais premissas de alguns do principais problemas que persistem desde a modernidade (e que estão, até, novamente na ordem do dia a nível mundial): as tensões existentes entre religião e política, entre a técnica, a racionalidade científica e a moral. Sem solucionar estas tensões, dificilmente se poderão afirmar – num mundo em mutação, onde (re) surgem centros de poder polarizados, alguns localizados em zonas geográficas que desprezam a concepção ocidental de Estado de Direito – os pressupostos essenciais de um pensamento liberal e individualista, assente num efectivo pluralismo, o único capaz de assegurar um clima propício para que haja crescimento económico e Paz. Rodrigo Adão da Fonseca

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