"A utopia silenciosa dos monges pacíficos" (publicado na Revista Atlântico, n.º 32, de Nov.07)

A Birmânia corresponde à delimitação histórico-cultural de uma vasta região asiática, encaixada entre a China, a Tailândia, a Índia e o actual Bangladesh. Banhada pelo mar de Adaman e pelo Golfo de Bengala, foi pelas águas do Índico que chegaram os primeiros portugueses, no início do século XVI; aí ficaram, até meados do Século XVII, na região de Pegu, onde construíram diversas feitorias. E não só: segundo Carlos Fontes o português influenciou a língua local, com expressões tão nossas como “leitão”, “toalha”, “natal”, “varanda” ou “bola”, que terão permanecido na linguagem, sólidas como as muralhas que protegiam as nossas posições militares, entretanto abandonadas, fruto das vicissitudes da gesta de um povo à época ambicioso, que queria mais do que aquilo que conseguia agarrar.

Esta terra, que carrega um pouco de Portugal, possui uma diversidade cultural, étnica e linguística impressionantes; une estes povos porém uma história de opressão interna e dominação externa: mongóis, indianos, tailandeses, britânicos, japoneses, subjugaram a Birmânia, que apenas conheceu curtos períodos de prosperidade, em especial no reinado do Rei Mindon, no século XIX, o mais amado pelo povo, ainda hoje símbolo de esperança.

Em Novembro deste ano faz um ano que visitei a Birmânia, refundada pelos militares nos anos sessenta e rebaptizada em 1989 de Myanmar, “Todos Juntos”, locução que reflecte o caminho para o socialismo só abandonado em meados dos anos noventa, já após a desagregação do Bloco de Leste. Quis ver com os meus olhos este país que vive fechado ao mundo, como se o tempo não existisse. Visitar a Birmânia equivale, por isso, a uma pausa nas nossas vidas: já conceberam viver quase um mês sem telemóvel, internet, CNN, jornais ou pagamentos com VISA? Pois é: até sair de Rangoon, de regresso a casa, todos estes pressupostos do nosso modo de vida desaparecem, somos forçados a aderir a um novo quotidiano, onde a tirania, por ironia, nos devolve o tempo. Neste contexto, um mês poderia parecer uma eternidade. Uma ilusão de eternidade que rapidamente se esgota, dando lugar a um tipo de tempo que nos molda a alma, vivido entre os telhados de ouro dos pagodes que dominam a paisagem, longas conversas, refeições sem pressa, cheiros e cores intensas, sons e músicas monocórdicas que se repetem até nos derrotarem com a sua suave monotonia. Vendo coisas e ouvindo histórias do passado e do presente que nos fascinam e nos indignam e nos fazem sentir que, afinal, estamos vivos, e não adormecidos.

Não sei se a utopia silenciosa dos monges pacíficos da Birmânia vai surtir efeito, se este desabafo sem ruído, sem depoimentos, sem histórias pessoais que nos despertem, não será mais uma vez a expressão suicida deste povo com um karma sofredor. O braço de ferro é, como tantas vezes, desigual. Não sei se, para lá das notícias, tudo não regressará à triste normalidade.

A vida tem-me levado aos sete cantos do mundo, a sítios até que já esqueci. Não houve um só dia, porém, no último ano, que quando me cruzo com o leão que protege a minha casa não tenha desejado a libertação deste povo que tanto sofre. Por isso, e com palavras simples, junto-me aos que protestam. Sem explicações geopolíticas nem quadros macroeconómicos. Sem uma ideologia de base que justifique amores e ódios. Sem ícones nem mitos. Escrevo, apenas, para ocupar o vazio dos que falam em silêncio. Para recordar os que têm morrido, por quererem simplesmente viver. Para dar força aos que se insurgem sem armas, movidos pela fé. Para evocar os que têm desaparecido, apenas, imagine-se, por existirem, vítimas do ego e dos caprichos de militares que teimam em mostrar a força e extensão da sua maldade.

Retribuo cada sorriso, e pequenos e grandes gestos de bondade, alguns deles de um tipo que julgava não existir. É naif, mas é a única utopia que merece ser cantada: que dos gestos de bondade nasçam as liberdades. São estes os meus heróis, os que gostaria de ver elevados à categoria de ícones.
Rodrigo Adão da Fonseca

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