O que há de errado em estimular a procura por via do consumo

Os spin doctors do partido socialista continuam a insistir - e nos últimos dias têm-no feito de uma forma bem agressiva - em que um dos problemas da dita política austeritária é que, ao cortar rendimentos de funcionários públicos e pensionistas, diminuiu a procura interna e, consequentemente, o PIB; tudo para suportar a ideia de que, repondo salários e pensões, se recupera o crescimento. Discordo totalmente que numa economia aberta onde a soberania monetária é partilhada, seja possível induzir crescimento apenas por via da transferência de rendimentos do setor produtivo para supostamente aumentar a procura interna.

Não me interpretem mal, sou completamente a favor que todos possam ter o máximo rendimento possível. Leia-se: possível.

A primeira falácia, porém, das medidas de reposição salarial protagonizadas pelo PS passa por esquecer que, na perspectiva da economia nacional (vista como um todo), salários da função pública e as pensões não configuram rendimento, mas um custo. Não há nesta classificação nenhum juízo moral. Ao afirmar-se que os salários da função pública e as pensões são um custo, não se está a dizer que o trabalho público não tem utilidade ou validade, nem que os pensionistas não têm direitos e expectativas juridicamente formadas e moralmente legítimas. O que se reconhece é algo que é economicamente óbvio: salários e pensões pagos pelo Estado não resultam da criação de riqueza, mas de impostos presentes ou futuros (dívida). 

Explicando: o Estado, grosso modo, não cria riqueza. Cobra impostos à população e às empresas para depois pagar as suas despesas. Logo, o Estado só pode oferecer saúde, educação, administrar a justiça, garantir a segurança, pagar subsídios e pensões, se os sectores produtivos da sociedade criarem riqueza. Acreditar que, ao transferir recursos do setor produtivo para o setor público se cria riqueza e se estimula a procura, e que, com essa procura, se faz crescer o setor produtivo e o emprego, é insistir na receita que nos trouxe até aqui. É que precisamente por distribuir mais do que aquilo que tem, a cada momento, o Estado português há quarenta anos que acumula défices crónicos; dito por outras palavras, todos os anos o nosso Estado gasta mais do que aquilo que consegue cobrar à economia produtiva, equilibrando a balança com a emissão de dívida pública. A razão que levou a Troika a limitar salários e pensões prende-se apenas com esta realidade: a de que o Estado português não pode ter mais despesa do que aquela que a economia privada consegue suportar, por via de impostos presentes.

Desde 2011, depois de bater no fundo, Portugal passou a orientar-se menos para o mercado interno, valorizando uma rota de criação de riqueza por via da produção destinada crescentemente ao exterior. Este circulo é, entendo, virtuoso, e é fácil de explicar porquê: se eu vendo ao exterior, acumulo mais rapidamente riqueza para pagar salários e impostos, investir, e consumir bens e serviços nacionais e importados. Uma economia exportadora cresce mais rapidamente do que se estiver apenas orientada para um mercado interno como o nosso, de pequena dimensão, altamente dependente de bens importados e onde há pouco capital. Este é o caminho mais sustentável para que Portugal possa recuperar rendimento: as nossas empresas exportadoras se continuarem a crescer vão continuar a criar mais emprego e a gerar mais rendimento. Havendo uma economia privada a produzir, o Estado pode cobrar mais impostos para cumprir as suas finalidades.

A segunda grande falácia do estímulo da procura por via de uma suposta reposição de rendimentos é que é claro que boa parte do montante transferido será gasto em bens importados, desviando recursos para o exterior, o que dilui e muito o que poderia ser a valorização do nosso setor produtivo. Não há qualquer problema em consumir bens importados, desde isso seja feito no quadro de uma economia equilibrada, que não acumule défices públicos ou na balança de transacções com o exterior.  No momento atual, em que o valor dos juros é negligenciável, o peso dos desequilíbrios e da acumulação de défices não se faz sentir em toda a extensão, mas engordar o stock de dívida só reforça as condições para um default a prazo que arrasaria/arrasará a nossa economia por uma geração.

Nada garante, finalmente, que parte do montante transferido venha a ser gasto, induzindo a procura interna, e não seja canalizado para amortização de dívidas antigas ou, simplesmente, para aforro.

A aceleração da reposição dos salários dos funcionários públicos e dos pensionistas antes que esteja feita integralmente a consolidação orçamental tem assim um risco elevado: o de estarmos, para aumentar o consumo atual, novamente a acumular dívida que terá de ser paga no futuro, com juros. 

O PS assume que esta reposição vai ser feita no quadro do cumprimento das regras impostas pela União Europeia e pelos Tratados em matéria de défice. Fico a aguardar pelo Orçamento de Estado que suporta semelhante exercício. É que, se já é mau defender uma reposição antes que a consolidação orçamental esteja terminada, mais grave será se as medidas do PS representarem um regresso à violação de défices que dificilmente será aceite por quem nos financia: com a miragem de voltarmos ao cenário de 2011, em que o pagamento integral de salários à função pública e pensões esteve em risco.

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