Identidade e género

A secretária de estado, Graça Fonseca, optou por, numa entrevista ao DN, dar nota daquilo que é, nas suas palavras, a sua "identidade sexual", considerando ser esta atitude, "completamente política". Tem havido diversas reações à entrevista, como seria de esperar. Umas grotestas, que não me merecem comentário. Há em qualquer caso um certo padrão dominante, aceitável no plano do argumento, que dá nota que as opções sexuais fazem parte do domínio do privado, e que nesse sentido não têm relevância política. 

A entrevista é bastante rica nesse contexto, e a entrevistada justifica, a meu ver, bem, a sua decisão, pondo sob tensão aquilo que é o conflito entre a sua esfera de privacidade, e um gesto que considera político. Dá nota, ainda, de uma noção fundamental: que as sociedades não são neutras, funcionando segundo um quadro de valores, fazendo a distinção entre esta "neutralidade" e "imparcialidade". Destrói, a meu ver, a habitual arma de arremesso que é usada nestas situações - a do "preconceito" -, assumindo com grande simplicidade, e cito, que "(...) qualquer sistema vive num país em que há uma percepção dominante, um sistema de valores (...)". 

Em 1995, e numa curta passagem de um semestre que tive pela universidade de Brown, no EUA, frequentei um seminário integralmente dedicado às temáticas do "racismo e democracia", onde para lá das questões da raça, se afloravam várias visões relacionadas com a afirmação de valores minoritários numa sociedade plural e livre. A experiência foi rica, pese embora tenha construído a minha forma de ver o tema muito mais em contradição que por adesão a grande parte das teses que, nessa disciplina em concreto, se ensinavam - ou, sendo rigoroso, se colocavam a debate. No quadro da discussão da afirmação daquilo que se definiu ser, uma identidade gay, emergia nos EUA por esses tempos uma corrente que, por oposição às correntes mais fraturantes ou de imposição, criticavam o que era a apresentação do homossexual como uma personagem afetada, devassa, e em muitos casos, folclórica, defendendo que isso esteriotipava a identidade e a imagem que a sociedade dominante teria de um grupo, em muitos aspetos, heterogéneo, e que em muitos casos viveria a sua vida muito longe do que seria a imagem-percepção-padrão do homem de tacão alto ou da mulher camionista. Assente no lead by example, esta corrente motivou muitos gays, nos EUA, mas também na Europa, a procurarem assumir-se como cidadãos exemplares, integrados na sociedade, com naturalidade e sem confrontação. 

Desde essa época que simpatizo com esta ideia, que admito senti implícita à entrevista da Graça Fonseca, a de que numa sociedade plural, em que existem sistemas de valores dominantes, é importante afirmar visões minoritárias (mas também as maioritárias), pelo exemplo. Há uma dimensão personalista, de naturalidade, de aceitação do outro, que só é possível no quadro das relações humanas. As sociedades são morais, seja quais forem os valores dominantes, e agrada-me que haja quem opte por defender a sua identidade mais pelo exemplo, pela promoção de role models (e não apenas na política), do que pela mera confrontação e imposição, só porque sim.

Nota: Há uma errada percepção, a meu ver, dominante, sobre o conceito de privacidade, muitas vezes entendido apenas como aquilo que é secreto, ou que não deve fazer parte do domínio público. No contexto da sociedade da informação em que vivemos, sou tentado a definir privacidade como a capacidade da pessoa definir o que dá a conhecer de si, no tempo e no espaço.

Nota: As afirmações de Graça Fonseca sobre Pedro Passos Coelho, e a sua eventual xenofobia, merecem a minha completa discordância, e estão em linha com o que escrevi n'O Insurgente, num post intitulado Falácias de um debate em movimento

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