aborto, sexualidade e responsabilidade (a partir do texto do Rui de Albuquerque)

O Rui de Albuquerque, acalmada a poeira por ele levantada, escreve um post que permite um debate um pouco mais sereno, e que me suscita alguns comentários.
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Desde logo, pergunto-me se a convicção sobre a dimensão do aborto que se apresenta (desenvolvida no ponto 2) resulta de um conhecimento empírico difuso, ou de dados reais, com alguma fiabilidade. Eu não sinto que o aborto tenha uma expressão brutal, quase pandémica. Embora admita que seja certamente um problema real, de difícil apreensão, por estar rodeado de um forte sigilo. Ainda assim, tudo o que tenho são percepções. Eu não quero nem reduzir nem extrapolar a questão, apenas perguntei neste post, porque considero essencial para que o debate seja efectivo, que se esclareçam, para lá das suposições de cada um de nós, as seguintes dúvidas:

Será que o aborto em Portugal é o flagelo de que se fala? Estaremos perante uma "pandemia" abortiva? Alguém estudou a fundo - barulho houve muito - os aspectos sociológicos associados à prática do aborto em Portugal na última década?

Diga-se, em abono do debate, será que a vulgarização crescente dos métodos contraceptivos não torna cada vez menor a necessidade de um instituto do aborto legal? Não estaremos já longe do imaginário dos que querem fazer passar a ideia que hoje se aborta com a frequência com que se vai ao cinema? Será mesmo que é isso que se passa? E se o é, porque será que se recorre tanto ao aborto? Por dogmatismo? Por inibição no recurso à contracepção? Por mera irresponsabilidade? Por se assumir o aborto como uma última forma de planeamento? O que faz com que no mundo de hoje o aborto seja uma questão supostamente tão relevante?

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No ponto 3, parte-se novamente de presunções. Assume-se já que há uma demissão do poder judicial em relação à aplicação da lei. No meu texto não fiz uma pergunta retórica. Tenho a sensação que não há muitos processos julgados: mas tenho dúvidas. E gostava de perceber o porquê dos números. Nesta fase, estas são dúvidas que importa esclarecer, e não com base na nossa intuição, mas com dados fidedignos:
Quantos julgamentos houve em Portugal em que mulheres tenham sido condenadas pela prática de aborto? Quantas mulheres estão presas? Qual a efectiva relevância penal da questão? Há uma demissão do poder judicial em relação à aplicação da lei? Porquê?
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Nos pontos 4 e 5 faz-se uma análise sobre sexo e sexualidade na sociedade. Ninguém duvida que nos dias de hoje se fala muito sobre sexo, desde tenra idade. Mas não só. Sex is in the air. É quase impossível não ser bombardeado, querendo-se ou não, por imagens, relatos, insinuações sexuais, sobretudo artificiais, associadas aos media e à publicidade. Não sei - porque não ando a espiar os hábitos alheios - se isso se traduz numa maior prática sexual: Será que hoje se faz mais ou menos sexo do que nos tempos idos? Esta é uma interrogação que pouco tem a ver com a questão do aborto, mas que tem o seu lugar.
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No ponto 6., escreve-se que o facto de haver sexo no ar "está, assim, na génese de comportamentos desregrados e prejudiciais, porque precoces, excessivos e não suficientemente entendidos, que são cada vez mais cedo «assumidos» pelos jovens. Que daqui resultem gravidezes indesejadas, e se recorra ao aborto como uma solução fácil". Reduz-se a questão do aborto a uma espécie de expediente adolescente (uma vez que em todo o texto não se fala dos abortos praticados em inúmeras outras situações, na maior parte dos casos, por adultos, imputáveis). Apresentar o aborto desta forma é afunilar a questão; é essencial dar-lhe a adequada perspectiva; para isso, seria importante ter dados sobre algumas das interrogações que coloquei no meu post abaixo, a saber:

Num tempo em o planeamento familiar bem aplicado é eficaz, sabido, como se sabe, que a prática sexual pode conduzir, entre outras consequências, a uma gravidez, queremos autorizar que alguém possa escolher se uma dada vida, já formada, deve ou não ser viável? E até onde? Quais são os nossos limites? E em que circunstâncias?

Permitindo o aborto a pedido, não estaremos a convidar os adolescentes , jovens e adultos a uma sexualidade menos responsável, por existir mais uma porta de saída? Qual o impacto que a legalização do aborto pode ter na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, como a SIDA e a hepatite B? Alguém sabe responder a esta questão?

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No ponto 7 constata-se que a Igreja, nos últimos tempos, não terá dado, supostamente, a devida importância à questão do aborto. Ora, se o aborto é algo que diz respeito à sociedade civil, não se deveria então questionar porque é que esta matéria não mobilizou quase ninguém em Portugal, tendo apenas marcado presença na agenda do Bloco de Esquerda? É pacífico, hoje, existir uma clara separação entre a Igreja e o Estado; assim, não faz sentido exigir-se da Igreja, neste plano, o que quer que seja. A Igreja, enquanto instituição secular, poderá participar - e certamente o fará - no referendo. Pois numa sociedade aberta, o debate é plural e livre; agora, não se compadece com exigências. Quem não quiser estar, não está. Convém ainda não esquecer que o referendo convida os cidadãos a pronunciarem-se sobre a despenalização do aborto, no plano civil. Este é um debate da Nação. Não estamos a referendar a moral da Igreja: essa diz respeito à comunidade de crentes.
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Caro Rui, Em todos os teus textos, apresentas-te como portador de um dado "realismo", mas quando disseco o que escreves, concluo que para já te baseias em suposições e crenças, que poderão, ou não, estar correctas. Confio que o tempo encarregar-se-á, ao longo do debate, de nos dissipar algumas delas, com as contribuições que naturalmente chegarão de quem domina algumas das questões que ainda têm contornos pouco definidos. Agora, para quem diz que "o discurso sobre o aborto (deve) ultrapassar as banalidades e os lugares-comuns habituais", e decidiu neste debate sustentar as suas teses na "assolação do real", parece-me que vais ter que trabalhar um pouco mais nas respostas, e não te resguardares apenas naquilo em que és claramente muito bom: "levar o debate para (...) os habituais jogos florais da retórica argumentativa". Estou certo que vais gostar também de trabalhar em cima dos números e da estatística. Com amizade, Rodrigo Adão da Fonseca

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