Torres de Babel

Em Junho de 2001, por motivos profissionais, desloquei-me a NY. E realizei um dos meus sonhos de infância, adiado nas anteriores incursões à Big Apple: o passeio longo de helicóptero que, entre outros locais, sobrevoava as Twin Towers. Por esses dias, NY era uma cidade alegre, de uma energia contagiante. O calor e o verão tinham acabado de chegar. A memória que guardo não anda muito longe da cidade descrita por Rushdie, em 2000, na sua obra "Fúria" (texto que novamente se recupera aqui no Blue Lounge), onde de uma forma deliciosamente feliz, se apresenta o ambiente reinante numa Nova-Iorque efervescente e despreocupada:
«(...) A cidade fervilhava de dinheiro. Rendas e bens imóveis nunca tinham sido tão elevados e, na indústria do vestuário, havia a convicção generalizada de que a moda nunca estivera tão na moda. A todas as horas abriam novos restaurantes. Lojas, empresas concessionárias e galerias suavam com o esforço de satisfazer a procura em flecha de produtos cada vez mais exóticos: azeites de edição limitada, saca–rolhas de trezentos dólares, Humvee de fabrico personalizado, o mais recente software antivírus, serviços de acompanhamento que incluíam contorcionistas e gémeas, instalações de vídeo, arte marginal, écharpes levíssimas feitas de penugem da queixada de cabras monteses. Eram tantas as pessoas a remodelar apartamentos que as provisões de aplicações e de mobiliário de alta qualidade eram disputadíssimas. Havia listas de espera para banheiras, puxadores, madeiras de lei de importação, lareiras a imitar o antigo, bidés, lajes de mármore. Apesar das recentes quedas do valor do índice de Nasdaq e do valor das acções da Amazon, a nova tecnologia tinha a cidade na mão: continuavam a debater–se os arranques, as OPA’s, a interactividade, o futuro inimaginável que tinha agora mesmo começado a começar. O futuro era um casino, e toda a gente jogava, e toda a gente esperava ganhar (...)». [Descrição do modus vivendi nova–iorquino no início do Outono de 2000; «Fúria», de Salman Rushdie,Publicações D. Quixote, 2001]
Regressei na Primavera de 2003, recém-casado, e de passagem. A cidade mantinha o seu ritmo. Discutia-se a proibição de fumar em bares e restaurantes. Em cada esquina, marcava presença o estilo de vida nova-iorquino. As Torres haviam caído. Mas os habitantes de NY não estavam resignados perante a adversidade. Não se culpavam pelos atentados. Nem, na sua imensa maioria, construíam retóricas para justificar o ódio e o fanatismo. A marca estava, contudo, bem presente, no "Ground 0". Onde antes havia Torres, restava um enorme vazio. Impressionou-nos o "Memorial", um extenso muro onde as vítimas eram apresentadas como heróis. Porquê chamar heróis a quem morreu sem escolha? Toda a cidade se organizou para honrar aqueles mortos. Sob os escombros, ainda eram visíveis marcas de fumo. Nada estava escondido. O terror, os nomes, as histórias. Cada um livremente podia fazer, naquele espaço, o seu juízo. Passados alguns anos, compreendo que NY honre os seus heróis. Muitos morreram sem escolha. Mas tantos foram salvos por cidadãos anónimos que, interrompendo a fuga, paravam, regressavam, para ajudar o próximo. Histórias de homens e mulheres comuns. Cidadãos anónimos, mas com nome. Alguns deles, perderam a vida. Os ataques às Torres Gémeas fizeram as suas vítimas. Mas a América descobriu os seus heróis. Meros cidadãos, com sentido de entreajuda. Uma sociedade com uma forte coesão comunitária. Com alma própria. Com amor à bandeira. Que não se rendeu ao medo. Nem aceita alterar o seu modo de vida, que assenta, como em nenhuma parte do planeta, na liberdade, no mérito, na iniciativa, na confiança, na verdade. No optimismo e na luta contra a adversidade. Muito se tem escrito, falado, projectado, sobre o 11 de Setembro. Milhares de "factos" inundam os nossos ouvidos e ofuscam os nossos olhos. A democracia perverteu-se, ao ponto de tantos conseguirem simplificar e terem ideias lineares, sólidas, sobre assuntos tão complexos. A globalização da informação trouxe destas coisas: os "factos" são prêt a porter, à medida da nossa "consciência" ideológica. Petróleo. Iraque. Conspiração sionista. Guerra de Civilizações. Incursões diplomáticas do Vaticano a Bagdad e à Casa Branca. Supostos movimentos financeiros na iminência dos ataques. Ligações à família de Laden. Dan Brown fez escola: muitos falam, poucos ouvem, e ainda menos pensam. Parte do Ocidente é uma enorme Torre de Babel, onde os governantes estão manietados, fogem das ideias próprias, antes procurando agir de acordo com um incidioso e mutável politicamente correcto, que se descobre na interpretação do ruído. Eu, por mim, apenas observo. E peço a Deus que não se esqueça deste pequeno espaço perdido na imensidão do Universo. Onde tantos o invocam. Mas cada vez menos o ouvem e respeitam. Rodrigo Adão da Fonseca

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